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- Ouve... - disse-lhe com súbita clareza o companheiro - sabes porque
sou capaz de claramente me ver... me conhecer... me confessar? Por
desprezo! Porque me desprezo. Desprezo é o sentimento, se é sentimento,
que a humanidade mais geralmente me inspira; e às vezes ódio, quando
pinta de belas aparências os seus piores vícios e cobardias; ou quando
excede os mais razoáveis limites da estupidez e da maldade... já hoje
viste, não é verdade?, darem-nos esmola vários nossos semelhantes.
Alguns te pareceram, decerto, dotados do verdadeiro espírito de
caridade. O teu coração agradeceu-lhes, talvez com sincera gratidão...
Pois analisa um bocadinho a caridade deles e o teu reconhecimento. Qual o
fundo dessas lindas aparências? Comodismo, vaidade, capricho, amor
próprio, complacência..., e também certa sentimentalidade torpe, certo
amolecimento obsceno a que, por aí, chamam bondade, e que só damos aos
outros para que os outros no-los dêem a nós; ou para os darmos nós a nós
próprios. Desprezo meu rapaz! Eis o que todos merecemos; o que tudo
isto merece. É por desprezo que eu mendigo e me disfarço de pobre sendo
rico; me faço ignorante e parvo, tendo muitos estudos. Era um grande
inquieto; mas desde que desprezo, alcancei a paz. Vivo pachorramente,
assisto à desgraça dos outros, divirto-me de vários modos, sou tão feliz
quanto me é possível sê-lo. Na realidade, vivo como se continuamente
estivesse representando. É como se tudo isto que vemos se reduzisse a um
volúvel cenário, e a vida mais não fosse que uma extravagante comédia."
José Régio
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