quarta-feira, 20 de junho de 2012

tu*


De novo o mar que espero
sentada à janela que dá para as rosas.
Que dá para todas as ruas que passei
com os teus passos. Para a estrada
onde virámos a cabeça para não ver
o homem esvaído no chão.
Depois comemos na casa de um amigo,
bebemos e falámos como se a vida fosse eterna.
À volta a estrada estava limpa, sem sinais
de sangue. As luzes sobre o mar nas duas margens
e a tua mão na minha perna. Lá no céu
um homem esventrado procura as suas asas.
Nada sei de anjos. Eu que espero o mar todos os dias
acredito na rotação da terra e na lei da gravidade.
Mas quando chegas o corpo não tem peso
e as palavras voam em redor de nós
alagadas em suor. E vem o mar.


Rosa Alice Branco

domingo, 17 de junho de 2012

domingos*

"Sempre me dei ares de rapariga muito solta. Mas, para falar verdade, estive a
fazer as contas no outro dia, e só tive onze amantes. Sem contar com o que
aconteceu antes de eu ter treze anos porque, a bem dizer, essa parte não conta.
Onze. Isso faz de mim uma puta? Olha para a Mag Wildwood. Ou a Honey Tucker. Ou
a Rose Ellen Ward. Elas já fizeram truca-truca tantas vezes que podiam formar
uma banda de percussão. É claro que eu não tenho nada contra as putas. A não ser
uma coisa: algumas podem ser verdadeiras mas têm corações falsos. Quer dizer,
não se pode foder o tipo e descontar os cheques dele sem pelo menos tentarmos
acreditar que o amamos. Eu cá tentei sempre.

Além disso, deitei
fora todos os meus horóscopos. Devo ter gasto um dólar em todas as estrelinhas
do raio do planetário. É uma chatice mas a verdade é que as coisas boas só nos
acontecem se formos bons. Bons? É mais se formos honestos, não uma
honestidade de cumprir a lei
… -eu cá era capaz de profanar uma campa
e de roubar os dois olhos de um morto se achasse que isso me dava gozo por um
dia -mas uma honestidade para connosco. Tudo menos ser-se
cobarde, fingido, um bandido emocional, uma puta: preferia ter cancro a
um coração falso
. O que não tem nada de beato, é uma questão muito
prática. O cancro pode matar, mas a alternativa de certeza que mata. Oh, que se
lixe, passa-me a guitarra que eu canto-te um fado num português
impecável."
Truman Capote

coração morto*


“Não é uma tartaruga
Escondida na sua pequenina carapaça verde.
Não é uma pedra para pegar
e por debaixo da tua asa preta.
Não é uma carruagem antiquada de metro.
Não é um pedaço de carvão que tu podes acender.
É um coração morto.
Está dentro de mim.
É um estranho
mas já foi afável,
abrindo e fechando como uma amêijoa
O que me custou, tu não podes imaginar
psis, padres, amantes, filhos, maridos,
amigos e tudo o resto.
O quão caro que foi continuar.
Também devolveu
Não o negues.
Quase que me pergunto se Abril o poderia devolver à vida
Uma tulipa? O primeiro botão?
Mas esses são apenas devaneios meus
a pena que se tem apenas quando se olha para um cadáver.
Como é que ele morreu?
Chamei-lhe MALVADO
disse-lhe, os teus poemas tresandam como vómito.
Não fiquei para ouvir a última frase.
Morreu na palavra MALVADO.
Eu fiz isso com a minha língua.
A língua, dizem os chineses
é como uma faca afiada
mata sem derramar sangue.
Anne Sexton


terça-feira, 12 de junho de 2012

Amén*

“Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre...”(Caio Fernando Abreu) 

terça-feira, 5 de junho de 2012

condenada*


"Não há nada que me possa salvar. Não há nada que me possa condenar. Sou condenado: esta certeza é a minha força e a minha liberdade.
*
A coragem de caminhar com os dois pés nus sobre a terra nua. A coragem de não querer mais do que os dois pés nua sobre a terra nua. A matéria da minha ascese.
*
Quero da vida viver cada dia com um pouco menos de medo. Um pouco mais perto de mim. Um pouco mais perto da minha verdade pobre. Apenas isto. Estritamente isto."

*Jorge Roque